Há 10 anos sobreviventes do Lima Cardoso falam da tragédia ao blog vimarense
Seis sobreviventes da tragédia que matou 49 pessoas no naufrágio do barco Lima Cardoso, há 28 anos, falaram ao blog Vimarense em entrevista ao editor Nonato Brito. Foram entrevistados Vera Lúcia Carvalho Pereira, Manoel do Nascimento Lopes (Maneco), Erly Cardoso Silva, Roberval Mendes da Conceição, Geraldo Guimarães Pinho (Zé Geraldo) e Maria Délia da Silva. Cento e cinquenta passageiros sobreviveram ao naufrágio. No ano de 2001, o poeta Benedito Reis publicou um livro todo em versos, narrando a tragédia no mar. O blog transcreve a seguir os depoimentos dos sobreviventes.
Vera não sabia nadar e se salvou numa tábua que passava boiando (já falecida)
Vera Lúcia Carvalho Pereira: “Quando eu estava à deriva, no mar, nunca pensei que iria morrer afogada, apesar de não saber nadar. Ao cair na água, consegui alcançar uma tábua do próprio barco que passava por perto. Lembro-me que o senhor Babá, que estava ao meu lado tentando se salvar, me encoravaja dizendo que era pra eu não me afobar que iria dar tudo certo. Por último o pai de Ana Gomes, do Cumã (já falecido) que agora não me lembro o nome, me empurrou várias vezes para a beirada com uma escada que levava tentando também sobreviver. Ao tocar a areia da praia comecei a me sentir fraca e vomitei muito a água que bebi. O que mais me deixou triste foi ver as pessoas mortas boiando e mais as pessoas que ali estavam salvas chorando desesperadas vendo os amigos e familiares mortos e e procurando os outros que tinham a certeza de que ainda estavam na embarcação. Da beira da praia, fomos levados para o Farol do Pirajuba e de lá se comunicaram com São Luís. Daí com um espaço de pouco tempo o helicóptero chegava para resgatar os sobreviventes e os mortos para Guimarães".
Maneco: "Em nenhum momento aquela imagem sai da minha cabeça" Manoel do Nascimento Lopes (Maneco): “Às sete horas da manhã saíram os dois barcos para a viagem com destino a São Luís, o Lima Cardoso e o Águia Negra. Saímos na maré baixa de enchente. A viagem foi tranqüila até montar a Ponta da Areia de Alcântara. De lá foi muito vento forte com muita maresia. Bem num local chamado Panacu, um pouco mais pra lá, já perto do Farol do Pirajuba, o barco bateu num recife, o recife do Mero como é conhecido. Aí foi aquele alvoroço. Abel quando viu a coisa preta gritou: ‘Camba redondo, Gody!’ (Gody era o mestre da embarcação). Os passageiros se desesperavam e começavam a gritar. Morreram muitas crianças. Se via muitos corpos boiando na beirada. Dos sobreviventes, o primeiro a chegar na beirada foi Zé Ribeiro, do Cumã. Eu não acreditava que ia sobreviver. Passei o tempo todo pensando na minha família e nos meus amigos. Foi muito triste. Em nenhum momento aquela imagem sai da minha cabeça”.
Erly Silva: "Quando cheguei a beirada, já encontrei muitas pessoas mortas" Erly Cardoso Silva - Nós saímos do cais do porto de Guimarães às sete da manhã. Aproximadamente às oito e meia aconteceu a batida no recife do Mero, o recife de terra. Eu estava na sala de máquina, a tábua atingida foi bem embaixo do motor. A batida atingiu justamente entre uma caverna e outra, talvez se fosse na caverna não faria tanto estrago. Na época, diziam que o mestre Gody foi o culpado de morrer tanta gente. Eu não acredito nisso. Toda a sua família estava na embarcação, filho que ainda não tinha um ano de idade. O buraco não tinha jeito de arrumar porque era grande demais. O que me chamou mais atenção foi as pessoas gritando, pedindo socorro. Eu tinha vontade de ajudar a salvar aquelas pessoas, mas não tinha como, tinha muita maresia. Quando eu cheguei na beirada já encontrei vários corpos e muitas pessoas salvas.O que se via no semblante de cada uma era a tristeza de ver os seus conterrâneos mortos. Vi muitos mortos: Emanoel Gomes, Aniquito, várias pessoas de Cumã. Lembro muito bem que Vera e Maria Délia encostaram no recife do Petíua. Meu tio Ribamar Santana não quis nos acompanhar, ficou no casco do barco e desapareceu com as ondas. Foi muito triste. As pessoas que sobreviveram, os homens, ajudaram o pessoal do helicóptero a transportar os corpos para Guimarães. Ficamos para o outro dia. A maior parte dos sobreviventes perdeu todas as suas roupas. O prefeito da época, do município de Alcântara, (Dr. Facury) doou várias roupas. Passei horas à deriva no mar. Eu e meu primo Cândido nos salvamos num tonel onde amarramos uma corda para ajudar a nos salvar e a salvar outras pessoas. Nessa época eu estava cursando o último ano do magistério na Escola Nossa Senhora da Assunção. Eu não era marinheiro do barco, sempre eu fazia umas viagem para garantir o dinheiro para eu comprar material escolar.
O comerciante Roberval Mendes conseguiu chegar à beira da praia com um colete salva-vidas
Roberval Mendes da Conceição - "O desespero começou aproximadamente às oito e meia da manhã. O barco bateu no recife do mero, em frente ao Farol do Pirajuba. Na hora do acidente eu estava na cozinha do barco jogando palitos quando sentimos o impacto, levantamos para olhar pra dentro da sala de máquina, o porão estava quase cheio de água, o motor já tomado pela água. Dessa hora em diante começou o pesadelo, nesse momento eu subi peguei um colete, tirei a roupa e caí na água, o vento estava muito forte e eram ondas muito grandes, batiam muito. O que se ouvia eram gritos e pedidos de socorro, as pessoas tentando sobreviver, foi muito triste, nunca irei esquecer desses maus momentos. Quando cheguei na beirada encontrei muitos corpos, dentre eles o de Emanoel Gomes, a filha do mestre Gody que ainda tinha um ano de idade, várias pessoas de Cumã, mas também várias pessoas vivas".
Zé Geraldo: "No desespero, as pessoas iam se jogando dentro d'água" Geraldo Guimarães Pinho - Por volta das oito e meia da manhã o barco bateu no recife de terra, o recife do Mero como é conhecido pelos pescadores daquela área. Quem nos avisou aqui em cima foi Aloísio, marinheiro do barco, que veio da casa de máquina com uma expressão de desespero "minha gente o barco está cheio de água, sacou uma tábua de perto do motor". Nesse momento o barco começou a balançar, o mestre tentou colocá-lo para a terra e não conseguiu, não mais dominou a embarcação. Ele só corria pra fora. No desespero as pessoas iam se jogando dentro d´água. Num espaço de cinco minutos o barco adornou para o lado esquerdo. Lembro que logo eu ia morrendo, a minha cabeça ficou entrelaçada na ensalça, mas dei um jeito e saí a tempo. Encontrei Meloca (tia de Limão) que estava grávida, quase pra ter criança e nós viemos nos segurando até encontrar um tonel há aproximadamente duzentos metros da beirada. Vinha muita gente agarrada na corda, tinha gente de Guimarães, Mirinzal, Cururupu. Na beirada encontramos vários corpos e sobreviventes. Lembro que os helicópteros transportavam mortos e vivos para Guimarães. A última viagem foi às 18:30 horas, no outro dia. Quem ficou lá recebeu a doação de roupas providenciadas pelo prefeito de Alcântara (Dr. Facury). A minha esposa Bizinha estava grávida de nove meses, com o susto teve logo o pequeno que tem o meu nome - Geraldo Guimarães Pinho Júnior - o Fuca. Até hoje tenho aquela imagem da tragédia.
A professora Maria Délia da Silva salvou-se em uma tábua de 50 centímetros
Maria Délia da Silva - Era uma manhã linda de 7 de julho de 1980. Apreciava a imensidão do mar do toldo do barco ao lado do meu amigo Paulino e o mestre do barco, Gody, que tinha um filho de 16 anos, aproximadamente. De repente, ouvimos um barulho de um raspão do fundo do barco, seguida de um apelo dos homens do motor "bota o barco pro meio, está muito na beira!" E o mestre imediatamente atendeu, rumando a embarcação para o meio do mar. Nesse instante ouvimos outro apelo vindo do mesmo lugar "toca o barco para a terra que está entrando água!". O mestre respondeu: - Como entrando água? O barco balançou e uma onda invadiu o comando e arrancou o seu filho dos seus braços. O desespero tomou conta desse homem que tinha o resto da sua família dentro do barco, e as ondas foram invadindo, quebrando, revirando, emborcando a embarcação, tábuas voavam para todos os lados, ondas enormes surgiam por todos os lados desfazendo aquele meio de transporte mais popular daquela época. O desespero estava no olhar, no grito, no choro sufocado, na resignação, nos lamentos de despedida, na procura do outro, enfim cada um ali estava vivendo uma emoção, um sentimento muito forte, que se tornaria indelével para os sobreviventes e único para as vítimas. Fiquei no barco segura numa corda, enquanto esperava um salva-vidas que Paulino foi buscar: não consegui esperar, uma onda violenta me arremessou para bem longe dali; onde o mar estava calmo e uma tábua de aproximadamente cinqüenta centímetros boiava, agarrei-me nela e foi a minha companheira de aventura, segurando-a com uma mão, consegui me livrar das roupas pesadas e sandálias, não me cansei nadando, a tábua me guiava, sabia que estava me levando para a beira. O o que não tinha certeza era de que estado chegaria do outro lado, mantinha sempre meu corpo inteiro boiando e segura na tábua com as mãos como se fosse um guidon.Vomitei muito e procurei controlar o vômito com o pensamento firme de que naquele momento estava no rio do Paquetá, tomando um banho de lazer, na verdade não podia me desidratar com aquele vômito inoportuno, e consegui controlá-lo. Conversava com Deus tentando me preparar para a morte que já tinha tempo suficiente para isso, já estava bastante tempo vendo mar e céu. Quando avistei a costa tinha certeza que estava perto. Naquele momento fui perseguida por ondas grandes que chamam “ondas de beirada". Foi uma luta travada entre eu e esses monstros. Aí me abraçava à tábua e ela me passava deixando-me rolar por cima delas igual a peão, para subir, levantava a tábua e ela me puxava, vomitava, olhava pra trás e lá vem a onda, tornava me abraçar com a tábua, as ondas eram cada vez maiores, parecendo uma fera faminta. Este ritual foi por cinco vezes seguidamente até eu tomei pé, a última onde me arremessou para cima de um recife, onde me segurei, estava raso, consegui chegar à beirada, levantei, ajoelhei e agradeci a Deus pela oportunidade que ora me dava. E foi a partir daí que me tornei uma mulher forte, sem perder a ternura e delicadeza que é peculiar da mulher vimarense, graças a ajuda de minha família, amigos e de toda a sociedade vimarense que envidou esforços para superamos esse trágico naufrágio. Voltei de barco para Guimarães, pois preferi ir de Pirajuba para São Luís, pois tinha dois filhos me esperando para dar continuidade na nossa vida e se fazia necessário demonstrar coragem, que só aqueles que têm coragem de caminhar podem viver todos os dias na certeza de chegar. E em Guimarães vivo feliz, já tenho dois netos, meus filhos cresceram dignamente, são cidadãos de bem, meus pais foram felizes aqui. O meu trabalho com a educação deste município me ajudou a viver melhor, a superar os obstáculos com serenidade e dignidade. Dentro em breve estarei aposentada como professora, porém como educadora continuarei a caminhada, esta é a minha missão.